Como bem sabemos, Corte de espinhos e rosas teve diversas inspirações e re-contos. Criaturas, histórias e alusões a histórias antigas podem ser encontradas por toda parte nos livros. Nesse texto pretendo mostrar mais sobre as histórias de “A Bela e a Fera”, que serviram de inspiração para o primeiro livro, em suas três versões principais, assim como suas influências para a trama. Mais para o final, porém, falarei um pouco sobre a reviravolta ocorrida nos livros seguintes e o que isso pode ter haver com a história de A Bela e a Fera, e essa sessão sendo mais teoria do que correlação com o conto original, de fato.
Irei abordar semelhanças com as três principais versões do conto. A original, uma versão censurada que surgiu anos depois e a versão da Disney. Todas tem semelhanças com A Bela e a Fera.
A primeira história de A Bela e a Fera foi escrita por Gabrielle – Suzane Barbot de la Villeneuve em 1740 e era uma obra enorme publicada em conjunto com outras histórias, bem maior do que um dos contos de fadas mais simples que temos noção atualmente. A questão desse conto original era a polêmica envolvendo-o, já que a história era tanto sobre amor quanto sobre sexo e atração. E tinha uma origem definida para a fera (nos livros: nosso Tamlin que muitos odeiam e poucas amam).
[blockquote text=”No conto original, A fera era um príncipe que perdeu o pai jovem e que a mãe o deixou sobre cuidados de uma fada madura enquanto ia lutar as guerras do Reino deles. Assim, a Fera cresceu sob cuidados dessa Fada que, conforme ele crescia, passou a desejá-lo e tentar seduzi-lo. Mesmo jovem, a Fera a recusou por conta do quão mais velha e feia ela era. E depois, quando a mãe do príncipe tomou conhecimento, proibiu terminantemente que a fada seguisse o seduzindo. Assim ela, revoltada, lançou uma maldição na Fera que o tornasse completamente repugnante e feral. A maldição só seria quebrada quando uma mulher se dispusesse a se envolver sexualmente com ele por livre e espontânea vontade. Bela, neste conto original, era filha de um Rei com uma fada, mas foi expulsa por ser um relacionamento não aprovado. Assim, ela foi escondida como a filha mais nova de um mercador que já tinha seis filhos e cinco filhas, tendo perdido a sexta filha há pouco. Esta parte da história é bem simples e conhecida. O mercador, de viagem, foi acometido por uma tempestade e passou a noite naquele castelo, mas ao recolher uma rosa para a filha mais nova foi atacado. A Fera, que tinha se tornado rude e furioso com o tempo, disse que o mataria, mas desistiu ao ouvir que a rosa era para a filha mais nova. Ele mandou que o homem levasse a filha para ele em um mês para que morresse em seu lugar ou que voltasse para ter sua sentença original. Toda a família ficou apavorada e Bela se entregou para a fera. A Fera, quando Bela chega, confirma se Bela foi por livre e espontânea vontade. Ela é aceita ao confirmar. A condição para sua estadia e mantimento do acordo é que Bela jante todas as noites com a Fera e assim ocorre. Com o tempo Bela passa a perder o medo da Fera e ele, ao notar isso, a convida para sua cama. A jovem, entretanto, se recusa. Ele se enfurece e a deixa sozinha, mas o pedido se repete pelos próximos dias. Enquanto isso, Bela tinha passado a ter sonhos onde se apaixonava por um príncipe incrível, mas de dia se apegava e respeitava uma fera repugnante. Com o tempo, ela aceita as insistências da Fera e divide o leito com ele, tendo essa noite sendo retratada de maneira até pudica. Suponho que mesmo para a autora colocar uma cena de sexo de forma óbvia seria demais para a época… Quando acorda, quem está do seu lado é o Príncipe. Eles começam a organizar o casamento, mas a mãe dele é contra por ela ser uma filha de comerciante, até que a fada perversa, a contragosto, revela a identidade de Bela, a sua ascendência, e eles se casam.” text_color=”#ffffff” width=”” line_height=”undefined” background_color=”#432365″ border_color=”” show_quote_icon=”yes” quote_icon_color=”#e7e3f1″]
A história original não era sobre a moral do relacionamento e sim sobre as perdas e rejeições de uma mulher madura, no caso a fada rejeitada pela princesa meio fada.
Deste conto original, suponho, foi retirada a eroticidade da situação, fato muito presente em ACOTAR e o passado da Fera. Com certas modificações, mas é claramente possível ver uma verdadeira analogia com a situação de Amarantha e Tamlin.
Tamlin, que era praticamente uma criança durante a guerra e que tinha Amarantha como amiga e aliada de seu pai. Ela, que o viu crescer, passando a desejá-lo e ao ser recusada, o amaldiçoou. Essa história claramente serviu como um ótimo plano de fundo, mesmo depois do primeiro livro, pois Rhys conta que houve uma história relativamente semelhante com a Rainha da Terra negra, que era noiva da Príncipe Drakon, mas foi trocada quando presenteou-o com Myriam, uma escrava metade feérica que ele ajudou a fugir e se apaixonou por ela.
A Amarantha de Sarah J. Maas foi mais brutal com Feyre do que a fada rejeitada de “A Bela e a Fera” foi, mas ACOTAR é um romance sobre a mocinha humana e não uma tragédia sobre uma mulher madura.
Não me passa batido também o quanto o sexo e a sedução estavam presentes na história original e o quanto isso é explorado em ACOTAR. É mais uma correlação interessante, pois a história chega a ser polemica por ser erótica, exatamente como foi em 1740 o conto de A Bela e a Fera, que, aliás, foi inspirado num caso real de um jovem rico adotado por um monarca indiano que arrumou uma esposa donzela que chegou a desmaiar quando o viu. Esse homem tinha hipertricose, uma doença que cobre o corpo inteiro da pessoa afetada com pêlos.
Voltando aos contos, mitos e adaptações, temos a segunda versão de A Bela e a Fera, onde encontraremos mais semelhanças para a trama de Sarah J. Maas.
Em 1757 a história foi re-escrita, adaptada e “censurada” por Jeanne-Marie Leprince de Beaumont onde muitos personagens foram cortados, outros simplificados e o teor erótico foi abandonado. Foi essa história que serviu como base para o conto da Disney. A desculpa para a adaptação da história com total corte das partes eróticas foi que o público de Madame Leprince de Beaumont eram jovens meninas, enquanto Madame de Villeneuve tinha publicado a história de maneira anônima, o que de fato ocorrera, e não tinha um publico especifico.
Madame de Villeneuve também tinha os próprios escândalos eróticos em sua vida, apesar de muito dela ser misterioso até hoje. Além de ser uma mulher madura em idade, tendo usado a própria solidão como viúva, e alvo de affairs, para inspirar a trágica fada que tentara seduzir o príncipe/fera.
Retornando a segunda versão do conto… Nesta versão a Bela não é uma meia fada adotada e não temos uma versão do passado da Fera particularmente envolvido. Essa história é sobre a mocinha Bela e sobre ver além das aparências, a história como conhecemos hoje. Ela, curiosamente, lembra muito Feyre em seu âmbito familiar.
[blockquote text=”Aqui, Bela é a filha mais nova de um mercador riquíssimo que possui três filhas. Eles, na terna infância dela, perdem toda a sua fortuna e são forçados a viver no campo em pobreza. Não menciona o que ocorre a mãe das garotas, mas menciona que as duas filhas mais velhas desprezavam a vida que tinham e se sentiam muito injustiçadas com toda a situação. Bela, por outro lado, não se importava. Ela foi feita de empregada das irmãs apenas por sua disposição para ajudar e seu gosto pela vida no campo… Um dia o pai delas encontra uma oportunidade para recuperar sua fortuna e viaja numa longa viagem, prometendo um presente para cada uma das filhas. As mais velhas embevecidas com a oportunidade, logo pedem presentes caros e opulentos. Bela, entretanto, pede a flor mais linda que o pai encontrar. A história neste ponto não tende a divergir. Há uma tempestade, o mercador se refugia no castelo da fera e, pela manhã, tenta roubar uma das opulentas flores do jardim. Aqui, porém, a história diverge um pouco. A Fera pede que o mercador leve uma de suas filhas para ele para que o homem possa sobreviver. As duas irmãs de Bela fogem e ela toma o lugar do pai com a Fera imaginando que seria devorada. Não ocorre e ela é tratada com as regalias de uma princesa. Sempre bem vestida, alimentada e saudável. Fera fazia todas as vontades da jovem e a tratava com extrema amabilidade. Bela o achava repugnante e pouco inteligente, mas passou a se apegar a ele pelo carinho. Ele constantemente a pedia em casamento, coisa que a jovem recusava gentilmente todas as vezes. Com o tempo, ela passou a sentir falta das irmãs e do pai, então pediu a Fera permissão para visita-los por um curto período de tempo. Foi acertado que ela voltaria por meio de uma mágica que dependia de um anel ser posto numa mesa… Ao chegar em casa foi bem recebida pelo pai, mas, ao contar sua história as irmãs se voltaram de inveja para com ela. A trataram absurdamente bem, com o intuito dela se esquecer de voltar para a Fera e, quando o fizesse, fosse devorada. Elas se ressentiam de sua vida simples no campo enquanto Bela vivia com luxos e regalias. Bela, de fato, demorou muito mais do que o combinado para voltar. Uma noite, porém, ela sonhou que a fera estava morrendo. Arrependida, Bela voltou imediatamente. A Fera não se alimentava mais por conta de achar que nunca mais veria Bela e estava morrendo nos jardins. A jovem compreendeu que amava a Fera, vendo-se incapaz de viver sem ele, e se declarou aceitando o pedido de casamento. Ao aceitar o pedido, a Fera se transformou num príncipe por ter uma maldição quebrada e então os dois se casaram vivendo felizes para sempre.” text_color=”#ffffff” width=”” line_height=”undefined” background_color=”#432365″ border_color=”” show_quote_icon=”yes” quote_icon_color=”#e7e3f1″]
Eu vejo muitas semelhanças nessa versão da história com a família de Bela e seu contexto.
Feyre era filha de um mercador riquíssimo que perdeu tudo condenando ela e as duas irmãs mais velhas a pobreza, exatamente como a Bela desta versão. Nestha e Elain estavam sempre querendo coisas caras, se ressentindo de suas vidas na pobreza e no campo, exatamente como as irmãs de Bela o foram. Na versão do conto, Bela é feita de empregada pelas irmãs. Na história de Maas Feyre é posta, mesmo sendo a mais nova, no papel de provedora. Ela caça, mata e prepara comida para elas.
Ela negocia, consegue dinheiro e arruma provisões necessárias, enquanto as irmãs mostram relutância em ajudar até nas tarefas básicas da casa.
Assim como no conto, Feyre volta à casa do pai e das irmãs. Não por saudade, mas por uma ameaça a Prythian. Sem previsão de retorno. Sem toda a questão do luxo e com Feyre não mais no papel de provedora, ela é mimada e bem tratada, mas Nestha a convence a retornar e lutar por Tamlin. Não um sonho, mas a lembrança de Nestha de quando ela tentou recuperar a irmã é o que motiva Feyre.
Ela retorna e a luta dela difere de qualquer ponto dos contos, apesar de contar com a questão de necessitar se provar por Tamlin, como a Bela do primeiro conto. Só que de uma maneira mais sombria.
Antes de ir para a próxima fase dessa análise, eu gostaria de correlacionar o comportamento de Tamlin com o da Fera quando ele, de fato, perde Feyre. Rhys, em Corte de Gelo e Estrelas, visita Tamlin e o encontra num estado lamentável onde ele desiste de cuidar de si, de sua corte e praticamente até de comer.
Então, vamos para a versão da Disney, a mais conhecida e aclamada. A mais simples e infantilizada, também.
[blockquote text=”As semelhanças com o primeiro livro ao conto da Disney são menos numerosos, mas se estendem quando consideramos a obra como um todo. Então, primeiro façamos um resume breve, já que a maioria já conhece a animação da Disney. A Fera era um Príncipe jovem que recusa dar abrigo a uma senhora em seu castelo por achá-la feia, então a senhora, que era uma bruxa, o amaldiçoa a ser uma Fera. A maldição só vai se curar se alguma mulher declarar seu amor sinceramente a ele. Esta maldição tem um período de tempo contabilizado pela queda das pétalas de uma rosa. Bela é uma jovem de uma aldeia francesa que toma o lugar de seu pai, um inventor e estudioso, após ele invadir o castelo da Fera. A principio, ela recusa qualquer convívio com a Fera, mas após tentar fugir e ser salva de lobos pela Fera, fato que a faz ser tomada por gratidão e se aproximar da besta. Nesta versão da história temos muitos coadjuvantes importantes. O caçador primitivo Gaston, que acha que mulheres devem ser esposas recatadas e que devem apenas dar a luz aos filhos do marido. Temos os vários integrantes da casa da Fera, que são todos peças importantes para a aproximação da jovem e a convivência dela no castelo. Nesta história, Bela fica com saudade do pai e a Fera permite que ela veja o mundo exterior pelo espelho ganhado pela Bruxa. Então, Bela vê o pai ferido e desacordado na floresta. A Fera, sentida, permite que ela se vá. Bela parte, mas depois de ter salvo o pai ela cai numa emboscada de Gaston. Ele garante que o único jeito do pai dela não ser internado num hospício é se casando com ele, porém, ela se recusa e mostra a Fera no espelho para provar que o pai não enlouquecera. Gaston, percebendo que ela está apaixonada pela Fera, a prende e reúne aldeões para atacar o castelo e ele poder matar a Fera. Os objetos, antigos súditos do príncipe, vencem a luta contra os aldeões, mas a Fera poupa Gaston, que o apunhá-la pelas costas. Bela chega a ele a tempo de apenas se aproximar e declarar seu amor para o corpo morto da Fera. Ele volta a vida como o Príncipe que fora outrora e todos os membros de sua corte retornam aos corpos originais. ” text_color=”#ffffff” width=”” line_height=”undefined” background_color=”#432365″ border_color=”” show_quote_icon=”yes” quote_icon_color=”#e7e3f1″]
Correlacionando tudo isso a ACOTAR temos algumas similaridades também. Primeiro, uma maldição com limite de tempo pré estabelecido. No conto, Bela a quebra no momento do cair da ultima pétala. Feyre quase faz o mesmo, mas não consegue se declarar e tem que lutar para recuperar Tamlin depois. Temos também, os membros da corte que auxiliam na aproximação e adaptação de Feyre, Lucien e Alis. Alis, fazendo o papel de Samovar, o bule de chá que é mãe de Zip, a colher de chá. Sarah colocou Alis como tendo sobrinhos ao invés de um filho, mas o papel é bem correspondente.
Lucien acaba representando todos os outros, com seus diversos humores, papéis e posicionamentos diferentes durante a história.
Suponhamos, neste ponto da história, que Rhys represente Gaston nessa versão, mas, apesar de sermos levados a pensar isso, seria uma blasfêmia afirmar o fato. Sim, ele é posto de alguma forma neste papel, mas é desconstruído e transformado em diversas maneiras durante a história. Ele mais auxilia Feyre e Tamlin do que qualquer coisa, então o papel de Gaston se divide entre Rhys e Amarantha.
Temos também o ponto da maldição da Fera que transforma os membros da sua corte em objetos, enquanto em ACOTAR vemos os membros da corte de Tamlin presos a máscaras por conta do feitiço de Amarantha.
Agora, vamos a minha interpretação mais teórica e ampla em relação aos outros livros. Já vimos as interpretações sólidas em relação ao primeiro livro, mas agora vamos além para descobrir quem é a Bela, quem é a Fera e quem são os outros.
Toda a questão do próximo livro é inspirada na história de Hades e Persephone, que será retratada em outra publicação, mas existem pontos que ainda lembram toda a questão de A Bela e a Fera. No próximo ponto da trama, Tamlin se tornou controlador. Está a ponto de se casar com Feyre, mas tenta doutrina-la a ser uma esposa pacífica que irá trazer a luz aos filhos dele e ser uma figura social apenas. Ele assume uma personalidade primitiva e disposto a qualquer coisa pra assumir Feyre como sua: sua mulher e propriedade.
Neste ponto, Tamlin está mais em forma de Gaston do que de Fera. Neste ponto da história, Rhys está ensinando Feyre a ler e disponibilizando sua biblioteca para ela. Uma correlação ao momento em que a Fera, na animação da Disney, dá acesso a Bela para sua biblioteca afim de agradá-la.
No final da história, vemos que Tamlin chega ao nível de fazer um trato com o inimigo para poder recuperar Feyre quando ela o deixa. Ele a obriga a voltar e quase mata boa parte da corte dos sonhos, além de ter transformado as irmãs de Feyre em feéricas. Tragédias uma seguida da outra… Podendo ser também uma correlação a quando Gaston reúne os aldeões para atacar a Fera e luta com os membros da corte dele, neste caso a corte dos sonhos.
Todavia, ainda temos mais uma possibilidade. Feyre sai de uma menina quebrada, carente e necessitada de paz para uma feérica poderosa, porém perturbada, rancorosa e traumatizada. Mais a frente ela tem que re-aprender quem ela é e quem ela quer ser, então, quando Feyre confronta o próprio reflexo no Ouróboro, espelho do inicio e fim, ela vê uma besta repugnante e horrenda em seu lugar.
Ela tem que encarar o monstro dentro de si e abraçá-lo. Entender que ela pode ser uma pessoa boa, mas também ter um monstro dentro de si. Ela pode ser os dois e está tudo bem. Ela aceitou o pior de si, aceitando que ela mesma é a Bela e a Fera.
E é assim que enxergo a nossa protagonista Feyre Archeron.
Texto e Teoria por: Roberta – Equipe Acotar Brasil